Desenvolvendo práticas colaborativas no contexto das políticas públicas, com a aplicação da metodologia de atendimento sistêmico ¹
Maria José Esteves de Vasconcellos ²
RESUMO
Este artigo descreve a “metodologia de atendimento sistêmico de famílias e redes sociais” ou “metodologia de atendimento sistêmico”, destacando suas características fundamentais, as quais justificam distingui-la como uma metodologia consistente com os pressupostos da epistemologia sistêmica novo-paradigmática. Trata-se de uma metodologia para a prática em que se busca, por meio da criação de contexto de autonomia, colaborativo, desencadear a coconstrução de solução para uma situação-problema, pelos próprios envolvidos nesta. Tendo relatado a forma como se desenvolveu essa metodologia, a autora explicita seus fundamentos epistemológicos e teóricos e distingue dois aspectos fundamentais dessa prática: a forma de constituição do “sistema determinado pelo problema – SDP” e a forma de coordenação dos encontros conversacionais do SDP. Depois de apontar a aplicabilidade dessa metodologia no contexto atual das políticas públicas brasileiras, a autora propõe ao leitor algumas questões para reflexão sobre tipos de práticas sistêmicas que vêm sendo constituídas.
PALAVRAS-CHAVE: metodologia de atendimento sistêmico de famílias e redes sociais; metodologia de atendimento sistêmico; sistema determinado pelo problema; solução de situação-problema, políticas públicas.
ABSTRACT
Developing collaborative practices in the context of public policies, with application of systems attendance methodology
This paper describes the “systemic attendance methodology for families and social networks” or “systemic attendance methodology”, emphasizing its fundamental characteristics, which justify that it can be distinguished as a methodology consistent with the assumptions of the newparadigmatic systems epistemology. This methodology aims the co-construction of solution to a problem-situation, by the very involved in this problem-situation, through the creation of a collaborative context of autonomy. Having reported how this methodology has been developed, the author describes its epistemological and theoretical foundations and distinguishes two fundamental aspects of this practice: the form of constitution of the “problem-determined system – SDP” and the form of coordination of conversational meetings of the SDP. After pointing the applicability of this methodology in the current context of Brazilian public policies, the author proposes the reader some questions on types of systemic practices that have been developed so far.
KEYWORDS: systemic attendance methodology for families and social networks; systemic attendance methodology; problem-determined system; problem-situation solution, public policies.
1. A SITUAÇÃO (PARADOXAL) VIVIDA POR PROFISSIONAIS QUE LIDAM COM RELAÇÕES HUMANAS
“Profissionais que lidam com as relações humanas”, em diferentes áreas – médicos, psicólogos, assistentes sociais, professores, orientadores educacionais, consultores empresariais (em gestão, economia, finanças), economistas domésticos, terapeutas ocupacionais e tantos outros –, têm sido tradicionalmente procurados por pessoas, instituições, empresas que estão vivenciando uma situação-problema, uma situação que elas acham que não está como deveria estar ou como gostariam que estivesse.
De acordo com nossa organização social, esses profissionais têm sido considerados, cada um em sua área de atuação, como “experts em soluções”. A visão de mundo tradicional nos levou a acreditar que cada um deles tem um acesso privilegiado a uma fatia da realidade, ou que detém um conhecimento especial, conforme a área ou disciplina científica em que concentrou sua formação. Por isso, costumamos ouvir comentários do tipo: “Vamos esperar pela orientação do Dr. Fulano, porque isso é da área dele”. As pessoas procuram diferentes “autoridades” ou “especialistas” para diferentes situações-problema.
Segundo Aun (2010), espera-se que esses profissionais sejam capazes de produzir mudanças nessas situações-problema. Essa expectativa está fundamentada em um pressuposto da ciência tradicional, na crença de que o profissional especialista detém um poder de mudança do “sistema” com que ele trabalha, sendo essa capacidade o que o caracteriza como um bom profissional.
Esse especialista intervém ou usa esse seu poder para que, agindo sobre o sistema – informando, convencendo, conscientizando, prescrevendo, ensinando, treinando, orientando, dirigindo – aconteçam as mudanças necessárias ou desejadas pelos clientes (pessoas, instituições, empresas).
Quando, por um lado, tem como meta que seu cliente/usuário desenvolva autonomia, faça suas próprias escolhas, mas, por outro lado, mantém-se acreditando que tem em suas mãos o poder de “conseguir’ determinado tipo de mudança e que é responsabilidade sua fazer escolhas adequadas para consegui-lo, esse profissional vê-se colhido por um paradoxo – uma situação sem saída – derivado de seus próprios pressupostos.
Como todo paradoxo, esse também captura tanto o emissor quanto o receptor das mensagens contraditórias, contidas na injunção “seja autônomo”. Para o cliente/usuário, a situação se configura assim: como agir por minha própria iniciativa (ser autônomo), se estou recebendo instrução sobre como agir, não podendo, portanto, ter iniciativa própria? Para o profissional, a situação sem saída é: como atuar, sendo competente e responsável por produzir a mudança do outro e de modo a conseguir que meu cliente/usuário assuma com autonomia a responsabilidade por sua própria mudança?
Além disso, nas políticas públicas, o profissional geralmente trabalha em contexto de pobreza, de violência, de histórias de miséria e degradação humana e costuma ser identificado pelas famílias como “parte do sistema”, sendo visto ou como promotor de mais infelicidade ou como mero distribuidor de bens materiais ou benefícios. Nessas condições, o profissional costuma vivenciar angústia, sentimento de impotência, desesperança, passividade, convencendo-se de que sua formação não é aplicável nesse contexto (Pakman, 1993a).
Essa parece ser ainda hoje, a situação em que se encontram muitos dos profissionais institucionalmente (socialmente) encarregados de promover mudanças – ou de solucionar situações-problema – conforme suas respectivas especialidades. Mas, felizmente, hoje já se configuram perspectivas para esses profissionais poderem atuar de forma diferente e inovadora.
A partir de 1960/70, cientistas/pesquisadores, trabalhando em seus laboratórios, em microfísica (Niels Bohr – questão da contradição), em termodinâmica (Boltzman – questão da desordem), em física quântica (Heisenberg – princípio da incerteza), em físico-química (Prigogine – saltos qualitativos do sistema), em biologia experimental (Maturana e Varela – objetividade entre parênteses), em física cibernética (von Foerster – sistemas observantes), em biofísica (Atlan – complexidade, auto-organização), se defrontaram com evidências que os levaram a questionar, entre outras, as noções da compartimentação do saber, da possibilidade do acesso a realidades objetivas, da possibilidade de instruções serem seguidas por sistemas humanos e por sistemas vivos, os quais foram reconhecidos como sistemas autônomos.
Tudo isso desencadeou mudanças de premissas dos cientistas, mudanças que estão constituindo um novo paradigma da ciência emergente, um paradigma sistêmico de 2ª. Ordem (Esteves de Vasconcellos, 1992; 2002). Alguns cientistas estão questionando e revendo suas crenças tradicionais e assumindo os novos pressupostos: complexidade dos fenômenos, em todos os níveis da natureza; instabilidade do mundo, imprevisibilidade e incontrolabilidade dos fenômenos; impossibilidade da objetividade e inevitável coconstrução da “realidade” e de todo conhecimento sobre o mundo.
Alguns daqueles profissionais tradicionais que já se sentiam desconfortáveis por estarem tomando decisões por seus clientes/usuários, ao tomarem conhecimento dessas evidências vindas dos laboratórios de pesquisa e refletirem sobre elas, assumiram uma postura sistêmica de 2ª. Ordem (que tenho chamado de epistemologia sistêmica novo-paradigmática – Esteves de Vasconcellos, 2004a) e se sentiram aliviados com as perspectivas abertas por essa nova visão de mundo.
Esses profissionais perceberam claramente e passaram a acreditar que, devido à forma como somos biologicamente constituídos, “não é possível ter acesso a uma realidade independente do observador” e que só faz sentido falar de realidade quando esta emerge de conversações, em espaços consensuais de intersubjetividade.
Entretanto, faltava-lhes algo fundamental e eles continuaram se perguntando: como atuar, na prática, de modo consistente com as novas crenças/pressupostos que assumiram? Continuaram em busca de uma metodologia para a ação.
2. UMA EXPERIÊNCIA SEMINAL
Motivada por essa questão, Aun iniciou seu projeto de pesquisa para o Mestrado em Psicologia Social na UFMG (Aun, 1996), estudando as políticas públicas, desenvolvidas no Estado de Minas Gerais, na área da educação, nas três décadas anteriores à sua pesquisa. Constatou que essas políticas se estruturavam em hierarquia, podendo ser representadas por uma pirâmide, como se vê na Figura 1.
Figura 1 – A estrutura hierarquizada das políticas públicas (Fonte: Aun, 1998)
No topo da pirâmide encontram-se as pessoas que detêm não só o poder de decisão sobre o que fazer, como os recursos necessários para o desenvolvimento da política. Em um nível intermediário, encontram-se aquelas pessoas institucionalmente encarregadas da implementação da política, tais como, gestores, pedagogos, professores, as quais constituem, em conjunto, o chamado corpo técnico da política. Finalmente, no nível inferior, na base da pirâmide, encontram-se os usuários da política, no caso das políticas educacionais, os alunos e seus pais.
Verificou-se, ainda, que muitas vezes o estrato superior da pirâmide tem se preocupado em promover uma participação dos estratos inferiores. Porém, em geral, isso tem se dado por meio de uma “consulta” aos dois estratos inferiores, cujas manifestações são levadas de baixo para cima, até o ápice da pirâmide, onde as pessoas ali localizadas recebem essas manifestações dos técnicos e dos usuários, usando-as para embasar suas decisões e elaborar o “programa a ser implantado”.
Acontece, entretanto, que os recursos disponíveis costumam ser limitados e, além do mais, em geral não é possível contemplar nesse “programa a ser implantado” a diversidade de pretensões identificadas na ampla “consulta” realizada. Acontece mais: quando as decisões da cúpula voltam para os estratos inferiores na forma de “programa a ser implantado”, muitas pessoas nesses estratos não se sentem atendidas, não se reconhecem nas propostas apresentadas, não se sentem coautoras, não se “engajam” em sua implementação. Então, apesar dos altos investimentos em boas intenções e em recursos mobilizados, esses programas tendem a não se sustentar, especialmente quando há substituição (política) dos personagens que se encontram no topo da pirâmide.
Diante desse quadro e tendo presente aquela sua preocupação com o como realizar uma prática em que os usuários das políticas públicas pudessem de fato desenvolver sua autonomia e assumir responsabilidade por sua mudança, Aun teve aceita pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS, da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte – PBH, sua proposta de realização de uma pesquisa-ação, abordando, de forma radicalmente inovadora, a situação-problema relacionada à inclusão da pessoa com deficiência na família e na sociedade.
Ali encontrou, de novo, a estruturação da política em pirâmide, havendo os que se encontravam na posição de decidir e planejar, os que se encontravam na posição de executar – as clínicas de tratamento das pessoas com deficiência conveniadas com a Prefeitura – e finalmente as famílias e as próprias pessoas com deficiência, na posição passiva de apenas receber o que foi planejado e a elas oferecido.
Para atuar de modo coerente com os novos pressupostos que constituem o quadro de referência para a mudança de paradigma da ciência (Esteves de Vasconcellos, 1992; 1995; 1997; 2002), criou um contexto de autonomia que envolveu todos os participantes do sistema amplo, um sistema linguístico que se constituiu em torno da situação-problema da inclusão da pessoa com deficiência.
Para criá-lo, fez cortes verticais na pirâmide (Figura 2) e convidou pessoas dos três estratos da pirâmide – gestores do programa, profissionais das clínicas, famílias e as próprias pessoas com deficiência – para participarem conjuntamente de encontros conversacionais.
Figura 2 – Fazendo cortes verticais na pirâmide (Fonte: Aun: 1998)
Costumamos dizer que ela “deitou a pirâmide” e viabilizou uma “estruturação em rede” do sistema (Figura 3). Com essa estruturação em rede, qualquer de seus membros pode ocupar, alternadamente, as posições de decidir e planejar, de executar e de receber.
Figura 3 – Esquema para uma possível estruturação em rede (Fonte: Aun, 1998)
Tendo distinguido, juntamente com a Prefeitura, a necessidade de uma reforma no convênio entre a Prefeitura e as clínicas conveniadas, esta foi tomada como a situação-problema (Figura 4), em torno da qual se constituiu o SDP (Sistema Determinado pelo Problema), cujos Encontros Conversacionais – ou Assembleias de Rede – contaram com a participação: dos órgãos governamentais, Programa de Apoio a Pessoas com Deficiência da Prefeitura, das clínicas conveniadas com seus especialistas em tratamento das pessoas com deficiência; das pessoas com deficiência e suas famílias, que se constituem como os usuários da política; de entidades da sociedade civil relacionadas à questão da inclusão familiar e social da pessoa com deficiência. Uma descrição minuciosa dessa experiência encontra-se em Aun (1996).
Figura 4 – Sistema em torno da situação-problema de reformulação do convênio (Fonte: Aun, 1998)
Considero que, com essa experiência, Aun propôs um modo de responder à pergunta sobre como atuar de modo consistente com o novo paradigma da ciência, experiência que se encontra na raiz das práticas sistêmicas desenvolvidas pela EquipSIS, como explicitei em “Uma narrativa sobre o desenvolvimento da nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico” (Esteves de Vasconcellos, 2010a).
Envolvendo-nos nessa proposta de desenvolvimento de uma metodologia sistêmica para solução de situação-problema, durante todos os anos subsequentes, dedicamo-nos, na EquipSIS, a experimentar sucessivas vezes nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico (Aun; Esteves de Vasconcellos; Coelho, 2005; 2007; 2010), aperfeiçoando-a gradativamente.
3. OS FUNDAMENTOS (EPISTEMOLÓGICOS E TEÓRICOS) DA PRÁTICA
No domínio linguístico da ciência, costuma-se distinguir que o afazer dos cientistas se desenvolve em três dimensões, chamadas de epistemologia, teoria e prática. Acredito que a proposta de uma nova metodologia, ou seja, uma proposta para a realização de uma prática inovadora deve não só conter as diretrizes ou orientações básicas para a ação do profissional que queira aplicá-la, como ainda deve explicitar a epistemologia e a teoria em que se fundamenta essa prática.
Lembrando que a epistemologia da ciência se refere às crenças ou pressupostos do cientista / profissional e que uma teoria científica se refere a um conjunto de princípios elaborados para a compreensão/explicação de um dado fenômeno de interesse, teremos um conjunto articulado e coerente constituído de crenças / pressupostos epistemológicos, de princípios/conceitos teóricos e de orientações/diretrizes para a prática.
3.1. Pressupostos epistemológicos novo-paradigmáticos
Como vimos, foram evidências, dentro do próprio domínio linguístico da ciência, que levaram os cientistas a questionar seus pressupostos tradicionais e assumir novos pressupostos que, em conjunto, constituem o que tenho chamado de novo paradigma da ciência ou de pensamento (epistemologia) sistêmico novo-paradigmático (Esteves de Vasconcellos, 2004a).
Esses cientistas / profissionais novo-paradigmáticos reconhecem a complexidade, em todos os níveis da natureza e se dispõem a atuar com sistemas complexos sem fragmentá-los. Reconhecem também a instabilidade do mundo, constituído de sistemas autônomos, em todos os níveis da natureza, e se dispõem a lidar com esses sistemas, imprevisíveis e incontroláveis, admitindo que não podem ter com eles interação instrutiva. Além disso, assumem também uma crença fundamental na impossibilidade – devida à forma como somos biologicamente constituídos – de termos acesso a realidades objetivas. Acreditando genuinamente que a objetividade é impossível, se dispõem a participar sempre da coconstrução do conhecimento sobre o mundo (sobre os fenômenos de seu interesse), em conversações, ou seja, em espaços consensuais de intersubjetividade.
3.2. Conceitos teóricos novo-paradigmáticos
Ao elaborar meu quadro de referência para a mudança de paradigma da ciência, percebi que os cientistas / profissionais estávamos assumindo uma nova epistemologia científica (o pensamento sistêmico novo-paradigmático), mas que nos faltava uma teoria sistêmica consistente com essa nova epistemologia da ciência.
Posteriormente, ao falar ou escrever sobre as práticas sistêmicas que estávamos desenvolvendo na EquipSIS – consistentes com a nova epistemologia da ciência – vivenciamos a falta de uma teoria sistêmica que pudéssemos utilizar para descrever e compreender o funcionamento e os resultados da Metodologia de Atendimento Sistêmico.
As teorias sistêmicas então disponíveis (para sistemas em geral), a Teoria Geral dos Sistemas de Bertalanffy e a Teoria Cibernética de Wiener, apresentaram-se como teorias para sistemas em geral, pretendendo-se que fossem transdisciplinares, mas seus autores não chegaram a questionar radicalmente a possibilidade de acesso a uma realidade objetiva, nem chegaram a pensar – como Maturana – que “a realidade e os sistemas emergem das distinções do observador”. Trata-se, portanto, de teorias sistêmicas de 1ª Ordem, que não podemos distinguir como transdisciplinares. A meu ver, uma teoria transdisciplinar só se torna possível sendo uma teoria sistêmica de 2ª Ordem, a partir do reconhecimento da inevitável participação do observador – o sujeito do conhecimento – em toda e qualquer afirmação sobre seu objeto de interesse (Esteves de Vasconcellos, 2013).
Já as teorias sistêmicas de 2ª Ordem, a Teoria da Autopoiese dos biólogos Maturana e Varela e a Cibernética da Cibernética do físico e ciberneticista von Foerster, não se apresentam como teorias para os sistemas em geral, nem especificamente para os sistemas sociais humanos. A Teoria da Autopoiese apresenta-se como uma teoria para os seres vivos, enquanto seres biológicos, uma teoria para o nível orgânico da natureza. De fato, Maturana elaborou também extensões de sua Teoria da Autopoiese para a compreensão dos seres humanos, enquanto seres vivos que vivem na linguagem, mas não chegou a elaborar uma teoria que abarcasse os sistemas sociais humanos. Tanto Maturana, quanto von Foerster apontaram as consequências da inclusão do observador nas descrições científicas. Entretanto, nesse aspecto, tanto a Biologia do Conhecer de Maturana, quanto a Cibernética da Cibernética de von Foerster, constituem-se antes como teorias do conhecimento, ou epistemologias, que respondem cientificamente à pergunta epistemológica: “como os seres vivos / humanos conhecemos o mundo?” (Esteves de Vasconcellos, 2013).
Portanto, as teorias sistêmicas disponíveis não se mostravam satisfatórias para fundamentar nossas práticas sistêmicas, consistentes com a nova epistemologia que adotávamos. Entendo que ao publicar o livro A Nova Teoria Geral dos Sistemas. Dos sistemas autopoiéticos aos sistemas sociais, Esteves-Vasconcellos (2013) permite-nos preencher esta lacuna.
De fato, esse autor distinguiu, na obra de Maturana, um conjunto de noções teóricas e conceitos aplicáveis a todo e qualquer sistema, mostrando que esse conjunto articulado constitui uma teoria sistêmica novo-paradigmática, de 2ª Ordem – e, portanto, transdisciplinar – que o próprio Maturana nunca explicitou como tal. Além de ter explicitado, de forma sistemática e articulada, essa “Nova Teoria Geral dos Sistemas” e de tê-la intitulado, Esteves-Vasconcellos (2013) avançou ainda mais, elaborou uma Teoria Geral dos Sistemas Autônomos e, a partir daí, abordou os sistemas sociais humanos.
Entretanto, essa publicação foi posterior à elaboração e fundamentação da nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico. Até então apenas havíamos identificado na literatura disponível alguns conceitos teóricos esparsos, consistentes com nossos pressupostos epistemológicos novo-paradigmáticos, em que pudéssemos ancorar uma fundamentação teórica da prática que estávamos propondo.
Assim, adotávamos alguns conjuntos de conceitos teóricos e chegamos a elaborar alguns outros: sistema linguístico, problema, sistema determinado pelo problema (Goolishian & Winderman, 1989); posição de não-saber (Anderson & Goolishian, 1993); processo de coconstrução, contexto de autonomia, expert em relações (Aun, 1996); rede social, mapa da rede, rede em torno da situação-problema, fases do “processo da rede” (Klefbeck, 1996, Speck & Attneave, 1974; Speck & Rueveni, 1976; Speck, 1989; Sluzki, 1997; Esteves de Vasconcellos, 1998); “situação-problema nossa” (Esteves de Vasconcellos, 2010a).
Distinguindo os sistemas sociais humanos como sistemas linguísticos, ou seja, sistemas de relações entre pessoas que conjuntamente constroem significados para a situação que estão vivenciando, ou para algum “objeto” de seu interesse, distinguimos toda e qualquer conversação como um sistema linguístico, cujos componentes são sempre pessoas em interação, conversando, interagindo, fazendo parte de uma conversa: quem não entra espontaneamente nessa conversa não integra o sistema distinguido pelo observador.
Quando as pessoas em interação conversam sobre algo que elas próprias definem que não está como deveria estar, distinguimos um sistema linguístico que se constitui em torno de uma situação-problema e usamos para designá-lo o nome que lhe foi dado por Goolishian & Winderman (1989), de “Sistema Determinado pelo Problema” ou SDP.
Portanto, situação-problema não se refere a uma situação pré-existente, objetiva, concreta, exterior às pessoas que conversam ou definida como tal por autoridades ou especialistas. Trata-se de uma definição que emerge de consenso, surgido nas conversações entre os próprios interessados na situação: é o significado que o sistema está dando à situação, é uma construção na conversação, uma “construção social da realidade”.
Em geral, as pessoas se referem à situação-problema simplesmente como problema, dizendo, por exemplo, temos um problema para resolver. Entretanto, aqui temos o cuidado de usar a expressão situação-problema porque, como veremos adiante, vamos usar em outro sentido a palavra problema.
Esse sistema que se constitui em torno da situação-problema tem sido chamado também de “rede em torno da situação-problema”. Trata-se, de fato, de uma rede de conversações em torno da situação-problema, mas, para ser concebida como SDP, essa rede deverá também emergir nas conversações, uma rede dinâmica, não reificada, o que será diferente do sentido em que tem sido concebida, nas políticas públicas, a rede institucional ou rede de serviços.
Considerando que a situação-problema é definida pelos próprios interessados nela e, além disso, a impossibilidade de acesso a realidades objetivas, o profissional sistêmico novo-paradigmático assumirá a “posição de não saber” sobre as experiências do outro (Anderson & Goolishian, 1993) e se mostrará genuinamente curioso sobre a experiência de cada um dos participantes da rede de conversações.
A seguir, ao ser apresentada uma descrição da prática, serão indicados outros conceitos teóricos utilizados para fundamentá-la e compreender a aplicação e os resultados da Metodologia.
4. A PRÁTICA: DOIS ASPECTOS FUNDAMENTAIS NA APLICAÇÃO DA METODOLOGIA DE ATENDIMENTO SISTÊMICO
A Metodologia de Atendimento Sistêmico está concebida como uma metodologia para solução de situação-problema, em contexto colaborativo, de autonomia, cujo processo básico é a coconstrução, presente em todos os passos da sua aplicação: tudo se dá em conversações entre os envolvidos na situação.
Sua aplicação constitui-se como um trabalho desenvolvido com um sistema (uma rede de conversações) constituído por pessoas que estão definindo uma situação, em que elas próprias se veem envolvidas como “situação-problema”, ou simplesmente, como costumam dizer, como um “problema”. Distinguindo aí a presença de um “sistema determinado pelo problema” – SDP e estando preparada para aplicar a Metodologia de Atendimento Sistêmico, a Equipe Sistêmica poderá, criando um contexto de autonomia, viabilizar que, com a participação de todos os envolvidos na situação, se coconstrua o encaminhamento de alternativas de solução para a mesma.
A aplicação da Metodologia de Atendimento Sistêmico começa, pois, com a identificação de uma situação-problema e tem dois aspectos fundamentais, que são: a forma de Constituição do Sistema Determinado pelo Problema – SDP e a forma de Coordenação dos Encontros Conversacionais do SDP.
4.1. A forma de Constituição do Sistema Determinado pelo Problema – SDP
A Constituição do Sistema Determinado pelo Problema se dá exclusivamente em conversações entre as pessoas que integram esse sistema, sem nenhum critério de inclusão que seja externo às próprias conversações.
Nas primeiras conversas com esse sistema linguístico inicial, a equipe tratará de identificar a situação-problema para logo redefini-la na forma de uma situação-problema solucionável. Por exemplo, em vez de falar: “vamos conversar sobre o alcoolismo”, pode-se redefinir para: “vamos conversar sobre as condições para manutenção da abstinência”. Em seguida, nessas mesmas conversas, procurará identificar, com o SDP inicial, quem mais (pessoas, famílias, instituições) poderia estar envolvido com essa questão e interessado em participar de um encontro para conversar a respeito.
Numa próxima rodada de conversas, todos os identificados serão visitados, para serem convidados para o Encontro Conversacional. As pessoas serão convidadas a participar, jamais convocadas, designadas ou intimadas. A equipe procurará identificar se essas pessoas estão de fato implicadas com a situação-problema.
Claro que serão variadas as motivações para se envolver com a situação-problema, mas, apesar das idiossincrasias, se alguém aceita o convite para conversar, provavelmente terá pensado: “isso tem a ver comigo”. Ou seja, todas as pessoas que aceitam o convite para conversar estão compartilhando uma situação-problema e têm então uma “situação-problema nossa”. Por exemplo, suponhamos que técnicos do Programa Bolsa Família estejam preocupados com a perspectiva de terem de cortar o benefício de famílias que não estão cumprindo as condicionalidades do Programa. Se procurarem ajuda de uma Equipe Sistêmica e juntos decidirem convidar as famílias para um Encontro Conversacional, estará se formando um SDP, a partir de uma “situação-problema nossa”, comum às famílias e à instituição (os técnicos): todos estarão vivenciando o risco de passarem por uma situação indesejada, para os técnicos, o risco de se reduzir a abrangência da política no seu âmbito de aplicação e, para as famílias, a perda do benefício. Como vimos acima, essa situação será certamente redefinida na forma de uma situação-problema solucionável, por exemplo, “criando condições para a viabilização do benefício”, convidando-se provavelmente outros possíveis envolvidos com essa situação-problema, tais como, a escola e o posto de saúde. Acreditamos que a implicação pessoal, o envolvimento com uma “situação-problema nossa” se constitui como condição fundamental para que aconteça o envolvimento no processo de coconstrução de solução para a mesma.
Então, um aspecto muito importante na forma de se constituir o SDP refere-se à presença das instituições, cuja participação não só interliga as motivações idiossincráticas dos diversos membros do SDP, em uma única “situação-problema nossa”, como também traz para o sistema importantes recursos que poderão ser colaborativamente mobilizados. Essa presença permite distribuir as responsabilidades, sem sobrecarregar os clientes/usuários, já desfavorecidos, que não detêm naquele momento todos os recursos necessários para solucionar a situação-problema que estão vivenciando.
Note-se que esses dois aspectos – a “situação-problema nossa” e a presença das instituições – são características dessa metodologia que a distinguem de outras práticas, como, por exemplo, a de “multi-famílias”, (Esteves de Vasconcellos, 2010 c), as quais não situo no contexto de atendimento, mas sim em um contexto de terapia. Adiante veremos essa distinção entre contexto de terapia e contexto de atendimento (Aun, 2005).
Identificados e convidados os possíveis participantes do Encontro Conversacional do SDP, constrói-se o chamado “mapa da rede”, que temos preferido chamar de “mapa do SDP convidado”, o qual será apresentado a todos os presentes, no início do Encontro Conversacional.
A aplicação da Metodologia de Atendimento Sistêmico no contexto das políticas públicas permite abordar conjuntamente uma situação-problema que é comum a várias famílias. Suponhamos que técnicos do Programa de Liberdade Assistida – LA de um município comecem a conversar, dizendo: “Está difícil viabilizar o cumprimento da determinação judicial de Liberdade Assistida por cinco dos nossos jovens em conflito com a lei”. Começam a emergir aí uma situação-problema e um SDP. Pensando em aplicar a Metodologia, os profissionais sistêmicos distinguem que, além dos técnicos do Programa LA, também estão conversando sobre essa situação o juiz, os psicólogos e assistentes sociais judiciários, os técnicos do CREAS, algumas instituições da comunidade e as famílias com os próprios jovens. Feitas as visitas e os convites, tem-se um mapa do SDP convidado, como se vê na Figura 5.
Figura 5 – SDP/rede em torno de uma situação-problema no Programa Liberdade Assistida – LA
Por que será que, com tanta gente envolvida, não se está conseguindo encaminhar o cumprimento da medida judicial? Acontece que todos estão ativamente comprometidos numa interação linguística, porém assumindo posições antagônicas sobre como lidar com a situação. Essas pessoas têm opiniões divergentes, colocam-se em posições antagônicas, acusam-se e recriminam-se mutuamente. Estão dizendo, por exemplo: o judiciário não deveria… o LA deveria… as famílias não podem… os jovens podem… as instituições da comunidade não precisam… os Conselhos, sim, precisam… Distinguimos ali uma forma de relação entre pessoas que, ao discordarem, fazem emergir uma situação-problema. São essas relações de antagonismo, expectativas, acusações e recriminações recíprocas que impedem ações colaborativas. Tem-se então um problema, que é relacional, e que está impedindo o encaminhamento de uma solução para a situação-problema identificada.
Tratando-se, pois, de um problema relacional, a Equipe Sistêmica abordará esse sistema linguístico na expectativa de viabilizar uma mudança nas relações que constituem sua organização: de antagônicas e competitivas para colaborativas e cooperativas, o que permitirá que o sistema encaminhe colaborativamente a solução para a situação-problema, com a consequente dissolução do SDP.
Portanto, apenas uma forma cuidadosa de Constituição do SDP, que viabiliza uma rede de conversações em torno da “situação-problema nossa”, não garante que se atinja o objetivo de dissolução do problema relacional e criação de um contexto colaborativo, de autonomia, indispensável para que aconteça a coconstrução de alternativas de solução para a situação. Daí a importância também do segundo aspecto fundamental na aplicação da Metodologia de Atendimento Sistêmico.
4.2. A forma de Coordenação dos Encontros Conversacionais do SDP
Depois de constituído o SDP, os Encontros Conversacionais acontecerão com aqueles que aceitaram o convite para conversar, em busca de alternativas de solução para a situação-problema identificada. A coordenação dos Encontros Conversacionais será conduzida por uma Equipe Sistêmica, constituída por profissionais sistêmicos novo-paradigmáticos.
O profissional sistêmico novo-paradigmático assume a “posição de não-saber” (Anderson & Goolishian, 1993) e, portanto, assume que não é “expert em soluções”, mas sim “expert em contexto”, ou seja, “expert em relações” (Aun, 1996). Assim, a Equipe Sistêmica atua sobre um contexto em que distingue relações de antagonismo, competição – relações que estão impedindo o encaminhamento de solução para a situação-problema – com o objetivo de viabilizar a emergência de relações colaborativas, cooperativas, de um contexto de autonomia.
Quando Aun estudava a estruturação tradicional das políticas na forma de pirâmide, procurou também uma definição de poder que fosse congruente com sua própria visão e encontrou a fórmula utilizada por Pakman (1993b), definindo poder como um contexto de interações, cujas regras de relação permitem que alguns definam o que vai ser considerado como válido para todos. Parafraseando Pakman, Aun (1996) definiu autonomia como um contexto, cujas regras de relação permitem que cada um defina o que quer para si e assuma as consequências dessa definição. Ou seja, autonomia nos remete às noções de “ser autor”, “assumir autoria” de suas próprias escolhas e ações.
Logo ao se iniciar o Encontro Conversacional, a Equipe Sistêmica procura explicitar alguns parâmetros que deverão balizar as relações naquele sistema, de modo que se crie um contexto seguro, participativo, colaborativo. Assim, estará atenta para garantir a todos igual direito a voz e validar todas as participações. Procurando distinguir possíveis posições polarizadas em relação à situação-problema, com o objetivo de desencadear flexibilização de tais posições, faz amplo uso de perguntas reflexivas, uma forma privilegiada de desencadear reflexão, instabilizar as premissas e viabilizar mudança do sistema – ou seja, mudança da organização (no sentido de Maturana) do sistema distinguido – com a emergência de uma nova organização, onde as relações constitutivas do sistema sejam relações colaborativas.
Considerando a concepção do SDP como uma “rede em torno da situação-problema”, a Equipe Sistêmica atua acompanhando as fases do “processo da rede”, tal como descrito por Speck e Attneave (1974), recurso teórico e instrumental utilizado por Klefbeck (1996) e resumidamente apresentado por Esteves de Vasconcellos (2010b).
Quando se pergunta pela meta dos Encontros Conversacionais do SDP, verifica-se que são diferentes as metas do SDP e da Equipe Sistêmica. A meta do SDP é a solução da “situação-problema nossa”, ou seja, conseguir formas de encaminhar alternativas de solução viáveis naquele momento. Já a meta da Equipe Sistêmica é viabilizar formas de relação que tornem possível para o sistema resolver a “situação-problema nossa”, com a consequente dissolução do SDP.
Assim, a Equipe Sistêmica, atuando como “expert em relações”, atua colocando o foco exclusivamente nas relações entre os elementos constituintes do sistema e, portanto, se abstém de sugerir, indicar ou propor soluções para a situação-problema que está motivando as conversações. Procura manter sua atenção dirigida para as relações entre todos os envolvidos com a situação, não se comprometendo com o encaminhamento de tal ou qual solução para a “situação-problema nossa”. Mas mantém-se comprometida com a qualidade das conversas, com a manutenção de um contexto em que cada um venha a “legitimar o outro na convivência”.
Esse modo de coordenar – de um profissional que assumiu a identidade de “expert em contextos” (Aun, 1996), é fundamental para que emerja um sistema linguístico que conversa sobre as próprias relações, na emoção do respeito mútuo e legitimação do outro, para que aconteçam o que tenho chamado de “conversações transformadoras” (Esteves de Vasconcellos, 2004b). Hoje, dispondo já da Teoria Geral dos Sistemas Autônomos (Esteves-Vasconcellos, 2013), chamaremos esse sistema linguístico que emerge na aplicação bem sucedida da Metodologia de Atendimento Sistêmico de “sistema de interconstituição de 2ª Ordem” (Esteves-Vasconcellos, 2014).
5. ONDE/QUANDO PODE SER APLICADA A METODOLOGIA DE ATENDIMENTO SISTÊMICO
Desde a experiência seminal de Aun (1996), a qual distingo como o ponto de partida para diversas outras experiências por meio das quais construímos gradualmente nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico, têm sido variadas as situações-problema abordadas, sejam referentes a relações familiares, institucionais, judiciais, pedagógicas, empresariais, etc.
O amplo leque de possibilidades de aplicação da Metodologia está ilustrado por Coelho (2010), que resumiu algumas experiências realizadas por nossos alunos, não só em contextos específicos (hospitais, escolas, tribunais, instituições governamentais, ONGs, empresas privadas), como também em situações localizadas na interseção de duas ou mais áreas, tais como: saúde/assistência social, judiciário/assistência social, educação/saúde, educação/assistência social, garantia de direitos em vários contextos.
Especificamente no que se refere às políticas públicas, Mendonça (2014) realizou pesquisa sobre a aplicabilidade da Metodologia de Atendimento Sistêmico nos Centros de Referência de Assistência Social. Tendo distinguido as dificuldades vividas pelos técnicos do CRAS – e por ele próprio – na implementação das atividades a serem desenvolvidas por esse equipamento das políticas de assistência social, vislumbrou a aplicabilidade da Metodologia de Atendimento Sistêmico nesse contexto de prática profissional. Estudando a organização e a estrutura, os princípios, os objetivos e as diretrizes do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, assim como as características da Metodologia de Atendimento Sistêmico, evidenciou como essa Metodologia se mostra adequada para atender aos princípios, diretrizes e objetivos da assistência social brasileira, constituindo-se como alternativa metodológica para se trabalhar – de modo bem fundamentado – com famílias em situação de vulnerabilidade social.
Como disse Aun (2010),
… mesmo em situações aparentemente pouco favoráveis ao processo de co-construção e ao contexto de autonomia [situações de violência, violação de direitos ou de processos judiciais], assim que as famílias percebem que o convite é genuinamente para se encontrar uma alternativa de solução para a situação-problema e que elas serão realmente ouvidas, assumem uma posição colaborativa e participam ativamente (p. 116).
Vale lembrar que, no âmbito das políticas públicas, a aplicação da Metodologia não se limitará ao trabalho direto com os usuários, mas poderá ser aplicada também, por exemplo, para viabilizar a articulação entre as diversas instituições / serviços / programas atuando no território.
Além disso, podemos ter presente que em qualquer contexto em que as conversações fizerem emergir uma situação distinguida pelos próprios participantes como uma situação-problema, uma situação difícil, que está requerendo uma solução, a Metodologia de Atendimento Sistêmico pode ser aplicada.
Nesse sentido, Aun (2010) lembra algumas outras situações já abordadas com a Metodologia, tais como: a elaboração de um modelo de gestão compartilhada de um município de porte médio; a implementação de CRAS em cidades de porte médio; a implementação do Programa de Prestação de Serviços à Comunidade, numa Secretaria Municipal de Assistência Social; a elaboração de propostas de medidas de preservação ambiental para um Plano Diretor Municipal; a construção conjunta de textos a serem apresentados em congresso. Como ela enfatiza, em todas essas situações, o contexto de autonomia e o processo de coconstrução foram possíveis, se mostraram eficientes e a experiência foi avaliada como gratificante.
Finalmente, numa situação em que estava difícil decidir com os alunos a sequência em que apresentariam seus trabalhos de conclusão de curso, sem recorrer ao sorteio ou à autoridade dos professores, bastou gastarmos algum tempo e coordenarmos adequadamente as conversações entre os grupos para, ao final, ouvirmos deles: “como foi bom termos mais essa aula prática sobre a aplicabilidade da Metodologia de Atendimento Sistêmico”.
6. QUE TIPO DE PRÁTICA CONSTITUÍMOS?
Tendo já apresentado a Metodologia de Atendimento Sistêmico, seus fundamentos epistemológicos e teóricos e sua aplicabilidade no contexto das políticas públicas, quero finalizar compartilhando algumas reflexões sobre possíveis relações entre práticas em desenvolvimento no nosso meio.
Desde que começamos a ministrar o curso de Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais, elaboramos uma importante distinção entre dois contextos de práticas sistêmicas: o contexto clínico, de terapia sistêmica e o contexto social, que chamamos de atendimento sistêmico. Essa distinção foi objeto de apresentações em encontros científicos (AMITEF e ABRATEF), desde 2001 e foi posteriormente publicada por Aun (2005).
Partindo-se da definição de contextos como “regras de relação estabelecidas pelo(s) profissional(is) e pelo(s) cliente(s), de formas implícitas e explícitas” (Aun, 2005, p. 63), essa distinção foi feita levando-se em conta os diferentes contextos que se constituem entre cliente/usuário e profissional/equipe, os quais geram expectativas e condicionam características do processo que se desenvolve e dos resultados que se esperam num e noutro tipo de prática. Não se trata, pois, de distinção baseada na graduação do profissional.
Então, ao aplicar a Metodologia de Atendimento Sistêmico, constituímos não uma prática clínica, terapêutica, mas uma prática de atendimento sistêmico, a qual temos adjetivado como novo-paradigmática (Esteves de Vasconcellos, 2008). Novo-paradigmática porque, como já foi dito, a distinguimos como consistente com os três novos pressupostos da ciência novo-paradigmática, conforme o quadro de referência para a mudança de paradigma (Esteves de Vasconcellos, 1992; 2002).
Como prática sistêmica novo-paradigmática, ela pode ser considerada como uma prática consistente com a epistemologia sistêmica de 2ª Ordem (Esteves de Vasconcellos, 1999). Por isso, pode compartilhar características com outras práticas que também se desenvolvem a partir dessa epistemologia, com o pressuposto de que não é possível o acesso a uma realidade independente de um observador e de que construímos na linguagem – em interações sociais – o que tomamos como real.
Nesse sentido – epistemológico – nossa Metodologia, tendo o processo de coconstrução como processo básico em todas as fases de sua aplicação, poderia caracterizar-se como uma prática construcionista social. Também no sentido desse pressuposto, poderíamos considerá-la uma prática narrativa, pois, ao aplicar a Metodologia de Atendimento Sistêmico, a Equipe focalizará as narrativas que trazem os diversos participantes do SDP sobre suas próprias experiências com a situação-problema. Ainda nesse mesmo sentido, poderíamos adjetivá-la como uma prática dialógica, uma vez que a forma de coordenação das conversações viabiliza o entrecruzamento das diversas perspectivas trazidas pelos participantes.
Desde o início da construção da Metodologia, temos enfatizado que “em função da modalidade de coordenação, instala-se no SDP, uma ‘relação colaborativa’ (…) uma rede de solidariedade” (Aun, 2010, p. 107) e, assim, a temos considerado também como uma prática colaborativa.
Como vimos, também tenho considerado que o modo de coordenar, de “expert em contextos” é fundamental para que emerja um sistema linguístico que conversa sobre suas próprias relações, na emoção do respeito mútuo e legitimação do outro, para que aconteçam conversações transformadoras das relações (Esteves de Vasconcellos, 2004b). E então poderíamos adjetivá-la como uma prática transformadora. E nesse mesmo sentido, seria uma prática generativa, a qual tem sido definida como um modelo que favorece a criação de novas versões de si, dos recursos postos em ação e das relações, ou seja, a transformação de argumentos de vida.
Talvez outros adjetivos que vêm sendo usados para distinguir outras práticas, metodologias, modelos, ferramentas para a ação… contemporâneas também pudessem se aplicar à nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico.
Mas a esta altura, compartilho minha preocupação com o que às vezes distingo como tentativa delimitação de territórios. Será que o “cenário das práticas contemporâneas” corre o risco de ficar tão compartimentado como o “cenário das práticas tradicionais”? O que estaria de fato diferenciando essas práticas contemporâneas? Que critério justificaria dar-lhes diferentes rótulos, mantê-las em diferentes compartimentos, com territórios delimitados, associações separadas, congressos separados (um para “práticas colaborativas”, outro para “práticas construcionistas sociais”, outro para “terapia narrativa e trabalho comunitário”)? Estaria se reproduzindo a compartimentação, ao que parece já estabelecida, entre construtivismo e construcionismo social?
Com a ciência tradicional, aprendemos a analisar, separar em partes, compartimentar para então procedermos à classificação e rotulação de objetos ou fenômenos, já então concebidos como entidades delimitadas, separadas uma das outras. Esse exercício exige que o cientista esteja sempre decidindo entre ou uma coisa ou outra, o que desenvolve uma atitude “ou-ou”.
Penso que, se quisermos escapar dessa armadilha, precisaremos nos exercitar em olhar mais para as convergências, sem reduzir nem eliminar as diferenças, e usar nossas competências para criar contextos de fato colaborativos, articulando epistemologia, teorias e práticas contemporâneas (de 2ª Ordem), em benefício daqueles com tivermos oportunidade de trabalhar, visando o desenvolvimento de seu bem-estar, de sua autonomia e de sua cidadania e propiciando uma mudança das relações sociais que estamos fazendo emergir com nossas práticas.
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¹ Artigo elaborado a partir da apresentação feita pela autora no International Congress of Collaborative Practices, em São Paulo, 06 nov 2013. Publicado na Nova Perspectiva Sistêmica, Ano XXIII, N. 51, abril 2015.
² Consultora, Professora e Palestrante: Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático e Metodologia de Atendimento Sistêmico. Autora de: Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência, 2002, 11ª edição 2018; Systems Thinking. The new paradigma of science, 2020; Terapia Familiar Sistêmica. Bases cibernéticas, 1995. Cocriadora da Metodologia de Atendimento Sistêmico para solução de situação-problema e coautora da obra Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais: Vol I, 2005, Vol II, 2007, Vol III, 2010. Coautora de: Curso de Engenharia de Energia. Uma iniciativa audaciosa de ensino, 2018. Artigos publicados em coletâneas e em periódicos nacionais e internacionais. Cocriadora e Coordenadora de Cursos de Pós-Graduação em Metodologia de Atendimento Sistêmico. Professora convidada em Pós-graduações nas áreas de Direito, Administração, Terapia Familiar. Terapeuta de Família e Casal. Sócia fundadora da EquipSIS – Equipe Sistêmica, Belo Horizonte (1993-2010).
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