A Teoria Geral dos Sistemas Autônomos e a Metodologia de Atendimento Sistêmico ¹
Maria José Esteves de Vasconcellos ²
Desde 2013, quando divulguei a publicação do livro de Mateus Esteves-Vasconcellos, intitulado A Nova Teoria Geral dos Sistemas, tenho defrontado com questionamentos, aos quais pretendo responder neste texto.
Explicitarei então a relação que distingo entre a Teoria Geral dos Sistemas Autônomos, de Mateus Esteves-Vasconcellos (apresentada no livro “A Nova Teoria Geral dos Sistemas. Dos sistemas autopoiéticos aos sistemas sociais”, 2013 (versão em espanhol, 2014 e versão em inglês, 2015) e a Metodologia de Atendimento Sistêmico, de Aun, Esteves de Vasconcellos e Coelho (apresentada na obra em 3 volumes, “Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais”, 2005, 2007, 2010).
Sempre considerei muito importante os cientistas termos presente que o afazer científico se desenvolve em três dimensões – epistemologia, teoria e prática – bem como ter clara a diferença entre fundamentos epistemológicos (pressupostos, crenças, premissas de onde se parte) e fundamentos teóricos (princípios explicativos do fenômeno de interesse) das práticas que propomos.
Assim, quando eu terminava a elaboração do meu livro Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência (2002, 11ª edição, 2018), já se evidenciava para mim uma lacuna no âmbito das teorias sistêmicas contemporâneas.
No livro, eu identificava uma nova epistemologia da ciência, uma epistemologia científica consequente dos desenvolvimentos ocorridos nas últimas décadas do século XX, nos laboratórios de Biologia e de Cibernética. Paralelamente, dedicava-me a desenvolver práticas sistêmicas consistentes com a epistemologia sistêmica novo-paradigmática, descrita no livro. Na época, nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico – desenvolvida na EquipSIS – já vinha sendo aplicada para a coconstrução de soluções, em contexto colaborativo, de autonomia, para variadas situações-problema.
Entretanto, ao falar ou escrever sobre nossas práticas sistêmicas novo-paradigmáticas, sentia falta de uma teoria sistêmica abrangente – e que também fosse consistente com a nova epistemologia da ciência – a qual pudéssemos utilizar para a descrição e compreensão do funcionamento dos sistemas sociais e, em especial para a compreensão do funcionamento e dos resultados de nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico. Poderíamos nos perguntar: por que não utilizar as teorias sistêmicas já disponíveis para embasar nossas práticas?
O Quadro de Referência para as Teorias Sistêmicas, apresentado no Quadro 1, mostra que, tanto a Teoria Cibernética de Wiener (na vertente mecanicista da ciência dos sistemas), quanto a Teoria Geral dos Sistemas de Bertalanffy (na vertente organicista dessa ciência), apesar de – ao deslocarem o foco do elemento componente do sistema para as relações entre os componentes – promoverem significativo avanço em relação ao paradigma da ciência tradicional, ainda se mantém vinculadas a esse paradigma.
Isso porque o contexto em que viveram, há cerca de sessenta anos, não permitiu nem a Wiener, nem a Bertalanffy, desprender-se da concepção tradicional de que os sistemas existem na natureza e de que cabe aos cientistas compreendê-los “tal como são na realidade”. Nenhum dos dois questionou radicalmente a possibilidade de acesso a uma realidade objetiva, nem chegou a pensar – como Maturana – que “a realidade e os sistemas emergem das distinções do observador”. Distingo-os, portanto, como teóricos sistêmicos de 1ª Ordem, que não chegaram a realizar sua pretensão de que suas teorias fossem, de fato, transdisciplinares. A meu ver, uma teoria transdisciplinar só se torna possível sendo uma teoria sistêmica de 2ª Ordem, a partir do reconhecimento da inevitável participação do observador – o sujeito do conhecimento – em toda e qualquer afirmação sobre seu objeto de interesse.
Já a Teoria da Autopoiese, dos biólogos Maturana e Varela, embora eu a distinga como uma teoria sistêmica novo-paradigmática ou de 2ª Ordem, apresenta-se – como muito claramente explicitado por seus autored – como uma teoria para os seres vivos, enquanto seres biológicos, uma teoria para o nível orgânico da natureza. De fato, Maturana elaborou também extensões de sua Teoria da Autopoiese para a compreensão dos seres humanos, enquanto seres vivos que vivem na linguagem. Porém, não chegou a elaborar uma teoria dos sistemas sociais humanos. Ademais, Maturana também não desenvolveu uma teoria para os sistemas em geral ou uma “teoria geral de sistemas” que, como tal, pudesse plenamente embasar nossas práticas sociais.
Assim como Maturana na vertente organicista, von Foerster na vertente mecanicista, também apontou as consequências da inclusão do observador nas descrições científicas – o que fizeram na Biologia do Conhecer e na Cibernética da Cibernética, respectivamente. Entretanto, também a fundamental contribuição de von Foerster à ciência contemporânea não correspondeu a uma teoria sobre sistemas sociais, nem a uma “teoria geral de sistemas”.
Tanto a Biologia do Conhecer quanto a Cibernética da Cibernética constituem-se antes como teorias do conhecimento, ou epistemologias, que respondem cientificamente à pergunta sobre “como os seres vivos/humanos conhecemos o mundo”. Maturana e von Foerster trouxeram para o domínio linguístico da ciência a questão epistemológica, ou seja, a questão do “sujeito do conhecimento”, mas nenhum dos dois elaborou uma teoria (um conjunto de princípios explicativos) que pudesse fundamentar nossas práticas sociais.
Assim, quando procuramos explicitar a fundamentação teórica das práticas sistêmicas novo-paradigmáticas – que desenvolvíamos com a aplicação da nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico – não estavam disponíveis teorias sistêmicas também novo-paradigmáticas, consistentes com a epistemologia da ciência novo-paradigmática. Naquele momento, utilizamos alguns conceitos teóricos, consistentes com o pensamento sistêmico novo-paradigmático, que se encontravam dispersos na literatura, mas não sistematizados numa teoria sistêmica.
Porém, hoje, entendo que o livro “A Nova Teoria Geral dos Sistemas. Dos sistemas autopoiéticos aos sistemas sociais”, de Mateus Esteves-Vasconcellos, veio preencher essa lacuna teórica, no âmbito da ciência novo-paradigmática de sistemas.
De fato, esse autor apresenta uma teoria que distinguiu implícita na extensa obra científica de Maturana, anterior a 2000. Trata-se de noções teóricas e conceitos aplicáveis a todo e qualquer sistema, que Mateus explicitou e apresentou de forma sistemática, como um conjunto articulado que constitui uma teoria sistêmica novo-paradigmática, de 2ª Ordem – e, portanto, transdisciplinar – que o próprio Maturana nunca explicitou como tal e que Mateus intitulou “A Nova Teoria Geral dos Sistemas” (Parte I do livro).
Porém, não é apenas isso que o livro contém. Conforme fica explicitado em seu subtítulo, “Dos sistemas autopoiéticos aos sistemas sociais”, o autor aborda e responde à questão polêmica – já instalada na área – sobre autopoiese no domínio social humano, ou seja, a questão da identificação dos sistemas sociais – e da sociedade como um todo – como sistemas autopoiéticos.
Elaborou a Teoria Geral dos Sistemas Autônomos (Parte II do livro) e assim evidenciou que sistemas sociais não podem ser distinguidos como sistemas autopoiéticos, mas que, tanto os sistemas autopoiéticos (que são apenas os sistemas vivos descritos pela Teoria da Autopoiese de Maturana e Varela), quanto os sistemas sociais humanos compartilham algumas características, por pertencerem, ambos, à categoria mais ampla de sistemas autônomos, como mostra o Quadro 2.
Tomando os sistemas autônomos como uma classe particular de sistemas, caracteriza-os como sistemas dinâmicos, circulares, recursivos e plásticos de 2ª Ordem e propõe como mecanismo explicativo de todos os sistemas autônomos as interações de transformações recíprocas entre seus componentes.
Na Parte III do livro, dedicada ao domínio social humano, o autor distingue duas classes especiais de sistemas sociais humanos: as instituições e os sistemas de interconstituição de 2ª Ordem. Enquanto as instituições são sistemas sociais humanos nos quais os indivíduos distinguem um padrão de interações que deve ser seguido por eles próprios, os sistemas de interconstituição de 2ª Ordem são sistemas sociais humanos nos quais os indivíduos – conversando sobre suas próprias relações – constroem e reconstroem recursivamente suas próprias formas de interação.
Finalmente, o autor aponta tecnologias sociais sistêmicas – a mediação sistêmica de conflitos, a terapia familiar sistêmica e o atendimento sistêmico de redes sociais como práticas sistêmicas que visam a solução de conflitos, a redução do sofrimento humano ou a solução de situações-problema, por meio da constituição desse tipo de sistema social – o sistema de interconstituição de 2ª Ordem.
Chegamos então ao ponto em que a Teoria Geral dos Sistemas Autônomos – de autoria de Mateus Esteves-Vasconcellos e apresentada em seu livro “A Nova Teoria Geral dos Sistemas” se relaciona com as práticas sistêmicas novo-paradigmáticas e, portanto, com a Metodologia de Atendimento Sistêmico, fundamentando-as teoricamente.
Aliás, o próprio autor explicita claramente essa relação, em um artigo publicado em 2014, intitulado “Não ensine a pescar! Sobre a fundamentação teórica das práticas sistêmicas”. Nesse artigo, considerando os sistemas/redes que se constituem em torno de uma situação-problema como sistemas autônomos e utilizando-se de seu conceito de interconstituição de 2ª Ordem, o autor justifica o título do artigo, que se contrapõe à proposta bastante difundida “não dê o peixe, mas ensine a pescar”: ao invés de ensinar a pescar, partindo do pressuposto de que isso será o melhor para o outro, “convidemos para uma conversação sobre pescaria”.
REFERÊNCIAS
Aun, Juliana Gontijo; Esteves de Vasconcellos, Maria José; Coelho, Sônia Vieira. Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais. Vol I. Fundamentos teóricos e epistemológicos, 2005. Vol II. O processo de atendimento, 2007. Vol III. Desenvolvendo práticas com a Metodologia de Atendimento Sistêmico, 2010. Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa
Esteves de Vasconcellos, Maria José. Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência. Campinas-SP: Papirus, 2002 (11ª edição, 2018).
Esteves-Vasconcellos, Mateus. A Nova Teoria Geral dos Sistemas. Dos sistemas autopoiéticos aos sistemas sociais humanos. São Paulo: ebook, Livraria Cultura/Kobo Books, 2013.
Esteves-Vasconcellos, Mateus. Não Ensine a Pescar! Sobre a fundamentação teórica das práticas sistêmicas. Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, Instituto NOOS, n. 50, dez 2014, 51-73.
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¹ Uma forma preliminar desse artigo foi publicada no site www.redessociaissistemicas, em 2016 e atualizada para publicação no site www.mariajoseesteves.com.br, em 2019.
² Consultora, Professora e Palestrante: Pensamento Sistêmico Novo-Paradigmático e Metodologia de Atendimento Sistêmico. Autora de: Pensamento Sistêmico. O novo paradigma da ciência, 2002, 11ª edição 2018; Systems Thinking. The new paradigma of science, 2020; Terapia Familiar Sistêmica. Bases cibernéticas, 1995. Cocriadora da Metodologia de Atendimento Sistêmico para solução de situação-problema e coautora da obra Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais: Vol I, 2005, Vol II, 2007, Vol III, 2010. Coautora de: Curso de Engenharia de Energia. Uma iniciativa audaciosa de ensino, 2018. Artigos publicados em coletâneas e em periódicos nacionais e internacionais. Cocriadora e Coordenadora de Cursos de Pós-Graduação em Metodologia de Atendimento Sistêmico. Professora convidada em Pós-graduações nas áreas de Direito, Administração, Terapia Familiar. Terapeuta de Família e Casal. Sócia fundadora da EquipSIS – Equipe Sistêmica, Belo Horizonte (1993-2010).